Congelamento de levedura

O congelamento sempre foi a forma mais eficiente para conservação de estruturas biológicas, desde nossos alimentos tradicionais, até as células, tecidos, gametas e até embriões. Portanto, as técnicas de criopreservação são conhecidas há muito tempo.

O grande problema em congelar a célula está relacionado com a queda da temperatura, onde a água congelada transforma-se em cristais pontiagudos danificando as membranas e outros componentes celulares. Os lipídeos, que formam as membranas celulares, solidificam como nódulos que deixam buracos pelos quais os conteúdos celulares escapam, podendo levar a morte celular. 

Apesar disso, hoje temos técnicas que permitem às células sobreviverem sem problemas ao congelamento e ao descongelamento. Existem substâncias químicas que atuam nesses processos e sabemos que a velocidade da alteração da temperatura diminui a formação de cristais de gelo, embora não sejam totalmente eficazes.

Crioprotetores (substâncias que facilitam o processo de congelamento como a glicose, trealose e quitosana) são comuns na natureza, onde observamos sapos que hibernam congelados durante o inverno e retornam à atividade na primavera, além de peixes antárticos que evitam a formação de cristais de gelo porque tem no sangue uma proteína açucarada crioprotetora.

A liofilização (técnica que se baseia na remoção da água intracelular de materiais biológicos congelados, por sublimação, evitando a formação de cristais) é considerada uma das técnicas mais seguras para obtenção de estabilidade no congelamento de cepas de leveduras, podendo sobreviver desta forma por mais de 20 anos.
Processo de liofilização

Mesmo considerada segura, não é viável para um cervejeiro caseiro devido a parafernália que deveria montar além do alto custo do equipamento.

Segundo o artigo de Freitas et. al. "Ação dos crioprotetores glicose, trealose e quitosana na manutenção da viabilidade de células de Escherichia coli, Saccharomyces cerevisiae após liofilização", observou-se que para a Saccharomyces cerevisiae todos os tratamentos (glicose, trealose e quitosana) apresentaram-se satisfatórios ao longo dos 60 dias avaliados. Segundo Kechinski et al. "Viabilidade de células de levedura em massas congeladas de pão francês", congelando a levedura a -18°C e a -40°C, obteve para ambas as temperaturas, uma redução em 50% da população em aproximadamente 25 dias.

Silva et al. (2008), buscando avaliar a viabilidade dos microrganismos presentes em uma coleção de cultura, semearam um total de 328 leveduras em meio de cultura contendo glicerol, mantendo-as sob refrigeração por sete dias e posterior congelamento a -20ºC. Após três anos de congelamento observaram recuperação de 99% das leveduras e no ano seguinte notaram uma redução de viabilidade das culturas com 90,6% de recuperação (144 leveduras). Diante dos resultados, observou-se que o emprego do congelamento foi vantajoso por seu baixo custo, fácil execução, além de ter favorecido a conservação de quase totalidade das leveduras por 48 meses.

Segundo Mariano (2006), "Nos dias atuais, é comum se fazer o armazenamento de fungos utilizando-se água destilada esterilizada. Esta técnica tem se difundido, demonstrando sucesso no seu emprego para alguns tipos de fungos (Baldasserini & Mungelluzzi, 1965; Rodrigues et al., 1992). Qiangqiang et al. (1998) compararam este procedimento com a liofilização para armazenamento de diferentes espécies de fungos, dentre 78 isolados em 12 anos de preservação."

Isso reforça que a formação de cristais com o congelamento da água não é tão impactante como se pensa. Como já citamos, muitos seres vivos possuem substâncias criopreservadoras naturais dentro de sua célula ou corpo, inclusive as Leveduras (Kveik) que passam o inverno da Noruega, extremamente frio, armazenadas em kveikstokker, e estão sempre prontas para serem utilizadas novamente.
Essa resistência pode estar relacionada ao dissacarídeo trealose que é uma substância que apresenta um papel de reserva de carboidrato e como protetor da membrana citoplasmática contra secagem, congelamento e tensão de calor (característica da Saccharomyces cerevisiae, principalmente das Kveik). Este carboidrato tem sido utilizado com sucesso na preservação de diferentes tipos celulares ao serem submetidos a tratamentos em baixas temperaturas. Esta característica é explorada na produção de produtos de panificação congelados, em que se utilizam fermentos tolerantes ao congelamento (Hino et al., 1990; Leslie et al., 1995; Takagi et al., 1997).

Alguns pesquisadores têm mencionado a possibilidade de ocorrência de alterações fenotípicas e/ou genotípicas em amostras mantidas conservadas, as quais podem influenciar os resultados finais do produto. Segundo Mariano "Diferentes processos de armazenamento de leveduras; estudos sobre a variabilidade fenotípica e genotípica" foram testados seis cepas de leveduras submetidas a cinco diferentes métodos de armazenamento. Os resultados obtidos demonstram que os métodos de conservação aplicados neste estudo permitem a manutenção da estabilidade das características fenotípicas e genotípicas. Lembrando, de forma simplificada, que Genótipo é o conjunto formado pelos genes de um indivíduo e o fenótipo refere-se às características visíveis.

Portanto, segundo Tortora et al., 2011, o congelamento entre -4°C e -20ºC (típicos de congeladores e freezers caseiros), apresenta-se como um dos métodos de conservação mais simples e baratos, além de oferecer boa segurança para o armazenamento de diversos microrganismos por períodos de alguns meses a dois anos.

EXPERIMENTO
Para testar a eficiência de congelamento da S. cerevisiae e sua viabilidade, duas cepas foram utilizadas: a Kveik Opshaug (White Labs) e a Nottingham (Lallemand). Elas foram congeladas a -15ºC (freezer residencial) durante uma semana. Após esse período, um cubo de gelo de cada cepa foi pesado: O Opshaug com 16,4g e a Nottingham com 16,2g, obtidas da lama de  fermentações normais (Opshaug no ambiente e a Nottingham a 18ºC). Cada cubo de gelo foi introduzido em uma solução starter com 100g de DME para um litro de água. A OG (8,5 Brix a 28ºC, corrigida para 1036) e a densidade, a cada 12 horas, foi obtida para saber a viabilidade dessa cepa após congelamento.

Resultados:
A tabela abaixo mostra os valores obtidos da densidade a cada 12 horas de starter, durante um período de 48 horas.
Tempo
Opshaug - Densidade
Nottingham - Densidade
0h
1036
1036
12h
1028
1025
24h
1025
1020
36h
1018
1017
48h
1017
1016

O gráfico abaixo evidencia os dados da tabela acima, mostrando a eficiência metabólica nas primeiras 48 horas, evidenciando que o congelamento para ambas as cepas consideradas não foi limitador de ação.

Muitos debates e pontos de vista divergentes são apresentados nos grupos de discussões na internet sobre o desenvolvimento de processos na fabricação de cerveja caseira, principalmente, quando envolve um assunto novo no Brasil, as Kveik.

Alguns afirmam que as leveduras morrem quando congeladas ou perdem a viabilidade, defendendo as Kveiks como superdotadas, podendo sobreviver até ao congelamento. Bom, como revisado de forma simples no texto acima, nem as leveduras, bactérias, tecidos, embriões e alguns animais morrem quando congelados, lógico com muitas exceções.

Esse simples estudo mostrou que tanto a Opshaug Kveik como a tradicional Nottingham, como esperado, não morrem quando congeladas e podem ser utilizadas normalmente como fontes fermentadoras. Com esse único estudo não temos base suficientes para grandes discussões, mas algumas observações podem ser feitas:

1- Podemos congelar qualquer tipo de levedura sem problemas de viabilidade.
2- A Nottingham metabolizou mais rápido que a Opshaug. Esse fato pode estar relacionado ao número de células inoculadas, mesmo utilizando um parâmetro simples, como o peso do cubo de levedura congelada, a proporção levedura/água no cubo pode ter variado muito. 
3- Não é preciso utilizar equipamentos sofisticados e químicas elaboradas para a preservação de cepas de leveduras congeladas.
3- A utilização de leveduras como nutrientes durante a fervura do mosto pode ser feita sem congelamento, já que o congelamento não altera a viabilidade das cepas.

O objetivo do estudo foi verificar, mostrar e iniciar uma discussão sobre o assunto para os cervejeiros caseiros, evidenciando a viabilidade do congelamento de leveduras, bem como a utilização de cepas congeladas no processo produtivo sem qualquer problema e evitar desencontros em relação a pontos de vistas. É lógico que estudos mais detalhados podem e devem ser feitos ampliando esses conhecimentos.

Concluindo:
Se você pretende ter sua levedura para as próximas brassagens, guarde hidratada na geladeira normalmente, mesmo se for Kveik. Agora, se pretende guardar por muito tempo (2 anos) pode-se congelar, entretanto, em relação a Kveik sugiro guardá-las secas, também na geladeira. Se pretende guardar por muitos anos, sugiro estudar formas de criopreservação.

Se a intensão é guardar a lama como forma de nutrientes para novas fermentações, como as leveduras não morrem congeladas, sugiro utilizar as sobras hidratadas, sem necessitar de mais um trabalho que é congelar.

Observação:
A maior parte dos microrganismos morrem quando colocados a temperaturas entre 60 e 70ºC durante 10 a 30 minutos, entretanto esporos de fungos (kveik) só morrem por exposição a temperaturas entre 70 e 80ºC, durante, aproximadamente 30 minutos. Portanto, para quem vai utilizar Kveik como nutrientes para as próximas fermentações, deve ter cuidado. Como forma de segurança (apenas uma indicação) pode-se colocar a lama de Kveik em uma panela de pressão por 20 minutos, eliminando esse poder de contaminação na próxima produção de cerveja.

Bibliografia citada e sites consultados:
Baldasserini G, Mungelluzzi C. The use of distilled water for the maintenance in culture of dermatophytes and yeast. Mycopathol Mycol Appl. 1965; 27(1): 110-2.
Hino A, Mihara K, Nakashima K, Takano H. Trehalose levels and survival ratio of freezetolerant versus freeze-sensitive yeasts. Appl Environ Microbiol. 1990; 56(5): 1386-91.
Leslie SB, Israeli E, Lighthart b, Crowe JH, Crowe L. Trehalose and sucrose protect both membranes and proteins in intact bacteria during drying. Appl Env Microbiol. 1995; 61(10): 6592-7.
Mariano, P. de L. Sant´Ana. Diferentes processos de armazenamento de leveduras; estudos sobre a variabilidade fenotípica e genotípica. Tese de doutorado. Faculdade de Odontologia de Piracicaba, Universidade Estadual de Campinas, 2006.
Qiangqiang Z, Jiajun W, Li L. Storage of fungi using sterile distilled water or lyophilization: comparison after 12 years. Mycoses 1998; 41(5-6): 255-7.
Rodrigues EG, Lírio VS. Lacaz CS. Preservação de fungos e actinomicetos de interesse médico em água destilada. Rev Inst Med Trop. 1992; 34(2): 159-65.
Silva, J. O.; Costa, P. P.; Renche, S. H. C. Manutenção de leveduras por congelamento a - 20°C. Revista Brasileira Análises Clínicas, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 73-74, 2008.
Tortora, G. J.; Funke, B. R.; Case, C. L. Microbiologia. 10 ed. Porto Alegre: Artmed, p. 964, 2011.



3 comentários:

  1. Prof Perrone só tenho a agradecer pelo conhecimento q o Sr dissimina. Hj inicio teste com lutra congelada. Estudarei muito seus conteúdos e espero poder trocar experiência com o Sr.

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  2. Fiz o processo, hoje (17/09/2021) estou fazendo starter de uma levedura Ale congelada a 14 meses atrás, postarei o resultado!
    Obs.: Já tive bons resultados com leveduras congeladas no período de 4 meses.

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